segunda-feira, 28 de novembro de 2011

“Os PMs armados e as tropas de choque vomitam Música Urbana”: abertura militar e o rock brasileiro dos anos 80

Benedito Carlos Silva

Sabendo que a “história é a ciência dos homens no tempo”[1]e que, as discussões em torno do ensino de história estão se tornado cada vez mais acentuadas, concomitante, os estudos feitos por historiadores alargam as maneiras de se pensar história; os educadores usando de criatividades, que o momento exige, partem para novas abordagens e discussões em sala de aula. Marc Bloch, o grande historiador francês, também diz que “são os temas do presente que possibilitam o retorno possível ao passado.”[2]

Trabalhando com esse duplo pensamento de Bloch e visando colaborar com professores de História, sugerimos o trabalho de análise e contextualização de letras de música. E, como o Rock in Rio que está na pauta deste ano, sugerimos analisar letras de rock brasileiros. O primeiro evento (Rock in Rio) coincidiu com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985, objetivamos contextualizar o rock do Brasil, principalmente na 1º metade da década de 1980, com o fim da ditadura militar: um grito atravessado na garganta.

Márcia Tiburi, colunista da Revista Cult, em seu artigo Rockfilosofia[3] demonstra o interesse de filósofos sobre o fenômeno do Rock. “A questão do rock é cultural e antropológica e, quando a tratamos como filosófica, há um mundo de reflexões a serem feitas”[4]. Podemos dizer também que, quando a tratamos como questão histórica, também temos muito a refletir sobre o movimento musical.

O período Figueiredo combinou dois traços que muita gente considerava de convivência impossível: a ampliação da abertura e o aprofundamento da crise econômica. Pensava-se que as dificuldades econômicas estimulariam conflitos e reivindicações sociais, levando a imposição de novos controles autoritários por parte do governo. A abertura seguiu seu curso, em meio a um quadro econômico muito desfavorável. Figueiredo tomou posse em março de 1979[5].

Como podemos perceber, o último governo militar, 1979-1985, tinha duas correntes que atrelavam seu governo ao compromisso com o processo de abertura para a democracia e tentar estancar a crise econômica. Poderemos usar de uma metáfora: o prisioneiro que passou anos numa cela e tem anunciada sua saída, mas que ao mesmo tempo não tem o que comer, ou seja, pode morrer de fome antes de ver a luz do sol novamente.

A recessão de 1981-1983 teve pesadas conseqüências. Pela primeira vez desde 1947, quando indicadores do PIB começaram a ser estabelecidos, o resultado em 1981 foi negativo, assinalando queda de 3, 1%. Nos três anos o PIB  teve um declínio médio de 1,6%.(...) A inflação alcançou o índice anual de 110% em 1980, caiu para 95,2% em 1981, para voltar a subir em 1982 99,7%. .[6]

A segunda crise do petróleo em 1979 contribuiu para isso. O governo Figueiredo não estava conseguindo controlar a inflação, a crise econômica abria um abismo no meio social. Uma pilastra que sustentava seu governo estava com enormes rachaduras. Porém, muito dessas rachaduras foram provocadas pelos governos militares anteriores. “No final do regime chegara a hora de pagar o dinheiro tomado emprestado por anos a fio dos trabalhadores e bancos internacionais, e não havia retorno suficiente de tantos  investimentos e empréstimos de favor”[7].

E o governo Figueiredo viveu essa crise gigantesca. “E a arte é o espelho social de uma época[8] . E para refletirmos mais um pouco: se Adorno e Horkheimer, ao estudarem o Canto XII da Odisséia de Homero, dizem que “a arte emerge como beleza impotente, sem eficácia, uma expressão sem conseqüências práticas, uma mera forma separada da ação”[9]. Por que então em tempos de regimes autoritários umas das primeiras classes a serem perseguidas são a dos artistas? Pois, em 1982 a Legião Urbana num show em Patos de Minas,[10] ela e a demais bandas, como Plebe Rude, foram chamadas para explicar as letras de músicas que cantavam. Iremos analisar a música que Renato teve que explicar:

 Música Urbana 2[11]
 Renato Russo

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,
Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,
Motocicletas querendo atenção às três da manhã -
É só música urbana.

Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto
Parece música urbana.

E a matilha de crianças sujas no meio da rua -
Música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.

Os uniformes
Os cartazes
Os cinemas
E os lares
Nas favelas
Coberturas
Quase todos os lugares.

E mais uma criança nasceu.
Não há mais mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Yeah, Música urbana.
Oh Ohoo, Música urbana.

A música urbana a qual o artista se refere pode ser pensada aqui como a ordem. A única ordem que ressoa por todo lado. A lei imposta pela ditadura: “a música urbana.” As ruas assistem a miséria popular, agravada pela inflação, “mendigos com esparadrapos poderes” e eles próprios não podem fugir da ordem, mesmo de uma certa forma à margem, eles também “cantam a música urbana”.

E num regime que só essa ordem, esse canto prevalece, alguém rasga a “madrugada querendo atenção”, ou seja, é preciso extravasar essa redoma imposta e os “PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana”. Já que eles são os “músicos”, que tocam essa canção, representantes dessa orquestra que se faz ouvir por todos os lados eles vomitam, ou seja, eles regurgitam aquilo que eles se alimentaram, o próprio regime.

E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana” Ao estudarem Moral e Cívica, ao saírem em filas indianas pelos pátios e, em ordem, cantarem todos os dias com a mão no peito, o Hino Nacional, uma ordem do quartel que as crianças aprendem a repetir.

“Os uniformes, os cartazes, os cinemas e os lares; nas favelas
coberturas, quase todos os lugares”. Quase nada escapa à música urbana. E aqui que me nos leva a pensar: qual seria o lugar onde a música urbana não atinge, não chega? Quero acreditar que os mortos sepultados pelo regime, esses não podem mais ouvir, pois quando tiveram a chance não dançaram conforme a música.

E se uma criança nasceu e já chora respondendo a música urbana. “Não há mentiras nem verdades aqui. Só há música urbana”. Lembrando que em 1981, ou seja, um ano antes, uma bomba tinha estourado dentro do carro de militares que a levavam para o atentado, no Riocentro, onde acontecia um festival de música com a presença de milhares de jovens; após a investigação “o governo de uma absurda versão dos fatos, inocentando os responsáveis”. [12]  A Música Urbana também é o silêncio do governo. É a verdade imposta. A criança que nasce já é abarcada por ela. Ouvindo a música estimula a interpretação. Se em todas as profissões há “uma perda da aura”[13], “continuar descobrindo coisas em nossa área pode ser uma forma de diminuir bastante esse desgaste. Ao levar para sala de aula músicas, criamos uma aproximação com o cotidiano nelas. Despertando o interesse para que, ao ouvir determinadas músicas, o aluno passe a prestar mais atenção na letra.  E temos que encontrar mecanismos para despertar a atenção do aluno. Para fazer  refletir a história numa letra de música, na música sugerimos que ao se trabalhar com esse foco, deve-se levar a música para ser ouvida). Desenvolver a temática História e música.

No artigo de Márcia Tiburi, ela diz pensar “o rock como uma complexa prática estética que é também política (...) como manifestação da vontade. (...) Quero dizer que o que o  rock traz ao mundo é uma autorização contra o autoritarismo[14]. Nos anos de 1980 houve uma explosão do rock brasileiro. No meio da década o Rock in Rio trouxe as maiores bandas do planeta para o Brasil. Assistiu-se ao surgimento de bandas como a Legião Urbana, Barão Vermelho, Titãs e outras. A ditadura estava chegando ao fim era preciso anunciar aos quatro cantos. Soltar esse sentimento contido, “ele faz isso por meio da pratica estética que foi recalcada ao longo da história” [15]

No curso de 1983, o PT assumiu como uma de suas prioridades promover uma campanha pelas eleições diretas para a presidência da República. Pela primeira vez, sua direção dispôs-se a entrar em uma frente com os outros partidos para alcançar esse objetivo. Por sua parte, em junho daquele ano, a direção nacional do PMDB decidiu lançar uma campanha no mesmo sentido que começou com um pequeno comício em Goiânia [16]

Embora tímida em 1983 essa campanha pelas diretas, logo em janeiro de 1984 ultrapassará todas as expectativas. Havia essa atmosfera de entusiasmo que vai grassando, tomando corpo até se tornar um gigante. Em 1983 o Barão Vermelho, embalado por esse entusiasmo lança o disco Maior Abandonado, na faixa 5 a música “Milagres” vamos ver o que ela nos diz:

Milagres[17]
Cazuza / Roberto Frejat / Denise Barroso
Nossas armas estão na rua
É um milagre
Elas não matam ninguém

A fome está em toda parte
Mas a gente come
Levando a vida na arte

Todos choram
Mas só há alegria
Me perguntam
O que é que eu faço?
E eu respondo:
"Milagres, milagres"

As crianças brincam
Com a violência
Nesse cinema sem tela
Que passa na cidade

Que tempo mais vagabundo
Esse agora
Que escolheram pra gente viver

Todos choram
Mas só há alegria
Me perguntam
O que é que eu faço
E eu respondo:
"Milagres, milagres"

As armas que estão nas ruas é o movimento das “Diretas Já”. É cada manifestante que quer gritar, assim como o rock, a democracia. Essas armas não matam ninguém: a liberdade de expressão, de já poder manifestar sem tanta recriminação. Também é a arte a arma. A arte, no caso a música, permite lutar sem armas. O microfone e a voz são as espadas e canhões. Se por conta da situação econômica a “fome está em toda parte”, o artista sobrevive levando na arte; as pessoas também vivem levando a vida na esperança de sair logo desse pesadelo: arte e esperança, motrizes da humanidade. Apesar do choro pela fome há um entusiasmo, uma alegria que tudo irá mudar. “Que tempo mais vagabundo/ esse agora/ que escolheram pra gente viver”.

Séculos de transformações e tragédias. O livro é de 1980. A insatisfação do homem com seu tempo. A dialética de Hegel diz que “ a flor nega o botão, assim como o fruto nega a flor e que, essa contínua oposição é que promove o dinamismo orgânico do processo como um todo.” [18]

O artista nega seu tempo para fazer dele algo melhor, mais condizente com o sonho interior. O título da música me causa muita curiosidade: Se no governo Médici, vivemos o “Milagre Econômico” o efeito tinha passado. Agora é tempo de um Milagre maior e mais abrangente: o Milagre Democrático. Embora o auto chame a atenção para a fome, o que fica evidente na  música e a manifestação popular que agita a cena. E ele grita. “Milagres!”
Em março de 1985 o governo de João Baptista Figueiredo chegou ao fim. Com ele também chegou ao fim um regime autoritário, que durou praticamente 21 anos. Em 1986, o Titãs em se LP Cabeça de Dinossauro já grita com toda força:

Polícia [19]           
Tony Bellotto
Dizem que ela existe pra ajudar
Dizem que ela existe pra proteger
Eu sei que ela pode te parar
Eu sei que ela pode te prender
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia
Dizem pra você obedecer
Dizem pra você responder
Dizem pra você cooperar
Dizem pra você respeitar
Polícia para quem precisa
Polícia para quem precisa de polícia

Nada mais justo e o Rock fez essa justiça: João Baptista Figueiredo foi o governante que encerrou o ciclo dos militares no poder; ele dizia que gostava “mesmo de quartel e de toque de clarim”[20] Agora tinha que ouvir o grito do rock da banda Titãs esbravejando no mais alto som “Polícia para quem precisa de polícia”.Infelizmente, ainda precisamos de polícia, mas espero que na administração do país nunca mais.

*Artigo produzido para a disciplina de Prática de Ensino em História sob a orientação da professora Ana Eugênia Nunes de Andrade, da Universidade do Vale do Sapucaí.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,

Entrevista de Raul Seixas começo dos anos 1980. Rede Globo

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

REVISTA Grandes líderes da História. Os presidentes da Ditadura Militar.

KARNAL, Leandro, PINKY Carla Bassanezi, (orgs): A História na Sala de Aula. São Paulo. Editora: Contexto. Pág.11

Revista Cult nº158

Revista Filosofia: Heidegger e as Tecnologias Nocivas.





[1]BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício do historiador. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pág.07
[2] Idem.
[3]Revista Cult nº158. pág.36
[4] Idem
[5] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Pág.501
[6] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Pág.502-503
[7] Grandes líderes da História. Os presidente da Ditadura Militar. Pág.42
[8] Entrevista de Raul Seixas começo dos anos 1980. Rede Globo
[9] DOSSIÊ, Cult. Edição Especial. Escola de Frankfurt. Pág. 17
[10] LIMA Alessandro, Feras do Rock. Pág. 23
[12] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Pág.505
[13] KARNAL, Leandro, PINKY Carla Bassanezi, (orgs): A História na Sala de Aula. São Paulo. Editora: Contexto. Pág.11
[14] Revista Cult nº158.Pág.36
[15] Idem
[16] FAUSTO, Boris. História do Brasil.São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2008. Pág.509
[18] Revista Filosofia: Heidegger e as Tecnologias Nocivas. Pág. 46
[20] Grandes líderes da História. Os presidente da Ditadura Militar. Pág. 38